CASO DE MIGUEL


Miguel é um artista, solteiro, 33 anos. Eis, a seguir, como foi percebido por diversas pessoas no dia 29/2/98.


Relato da mãe: “Miguel levantou correndo, não quis tomar café, não ligou para o bolo que eu havia feito, especialmente, para ele. Só apanhou cigarros e fósforos. Não quis botar o cachecol que eu dei. Disse que estava com pressa e reagiu com impaciência a meus pedidos para se alimentar e se abrigar. Ele continua sendo uma criança que precisa de atendimento, pois não reconhece o que é bom para si próprio.”



Relato do chofer de táxi: “Hoje de manhã apanhei um sujeito que eu não fui com a cara. Estava com a cara amarrada, seco, não queria saber de conversa. Tentei falar sobre futebol, sobre política, sobre tráfego e sempre me mandou calar a boca dizendo que a polícia anda procurando um desses sujeitos que assaltam chofer de táxi para roubar. Aposto que andava armado. Fiquei louco para me livrar dele.”



Relato do garçom de boate: “ontem à noite ele chegou aqui acompanhado de uma morena, bem bonita por sinal, mas não deu a mínima para ela. Passou o tempo todo olhando pra tudo que era mulher que chegava. Quando entrou uma loira de vestido colante, me chamou e queria saber quem era.como eu não conhecia, não teve dúvidas:foi na mesa falar com ela. Eu disfarcei e passei por perto e só pude ouvir que ele marcava um encontro às 9 horas da manhã, bem nas barbas do acompanhante dela! Sujeito peitudo! Eu também dou minhas voltinhas, mas essa foi demais...”.



Relato do zelador do edifício: “Ele não é muito certo da bola não. Às vezes cumprimenta, às vezes finge que não vê ninguém. A conversa dele a gente não entende. É parecido com um parente meu que enlouqueceu. No dia 29/2/98, de manhã, chegou falando sozinho. Eu dei bom dia e ele me olhou com olhar estranho e disse que tudo é relativo, que as palavras não eram iguais pra todos e nem as pessoas. Me deu um puxão na gola e apontou para uma senhora que passava e disse que cada um que olhava pra ela via uma coisa diferente. Disse também que quando pintava um quadro, aquilo é que era realidade. Dava risadas. Está na cara que é lunático.”



Relato da faxineira: “Ele anda sempre com um ar misterioso. Os quadros que ele pinta a gente não entende. Quando ele chegou, naquela manhã, ele me olhou muito enviesado e eu tive um pressentimento que ia acontecer alguma coisa ruim. Pouco depois, chegou uma moça loira. Ela me perguntou onde ele se encontrava e eu disse. Daí a pouco, eu ouvi ela gritar. Acudi correndo. Abri a porta de repente e ele estava com uma cara furiosa, olhando pra ela cheio de ódio. Ela estava jogada no divã e no chão tinha uma faca. Eu saí gritando: Assassino! Assassino!”



Relato de Miguel: Eu me dedico à pintura de corpo e alma. O resto não tem importância. Há meses que quero pintar uma Madona do século XX, mas não encontro uma modelo adequada que encarne a beleza, a pureza e o sofrimento que eu quero retratar. Na véspera do dia 29/2/98 uma amiga me telefonou que tinha encontrado a modelo que eu procurava e propôs nos encontrarmos na boate que ela freqüentava. Eu estava ansioso para vê-la. Quando ela chegou fiquei fascinado: era exatamente o que eu queria! Não tive dúvidas: fui até a mesa dela, apresentei-me e pedi para ela posar para mim. Ela aceitou e, marcamos um encontro no atelier às 9 horas.

Eu nem dormi direito àquela noite. Me levantei ansioso, louco para começar o quadro, nem podia tomar café de tão ansioso. No táxi, comecei a fazer um esboço, pensando nos ângulos da figura, no jogo de luz e sombra, na textura e nos matizes... Quando entrei no edifício eu estava cantando baixinho. O zelador falou comigo e eu nem tinha prestado atenção. Aí eu perguntei: o que foi? E ele disse: “bom dia”.nada mais do que um bom dia. Ele não sabia o que aquele dia significava para mim. Sonhos, fantasias, aspirações, enfim, tudo iria se tornar realidade, com a execução daquele quadro! Eu tentei explicar para ele. Eu disse que a verdade era relativa, que cada pessoa vê a mesma coisa de forma diferente. Quando eu pinto um quadro, aquilo é a minha realidade. Ele me chamou de lunático. Eu dei uma risada e disse: “está aí a prova do que eu disse: o lunático que você vê não existe.” Quando eu subia a escada, a faxineira veio me espiar. Não gosto daquela velha mexeriqueira.

Entrei no atelier e comecei a preparar a tela e as tintas. Quando eu estava limpando a paleta com uma faca, tocou a campainha. Abri a porta e a moça entrou. Ela estava com o mesmo vestido da véspera, e explicou que passara a noite em claro, numa festa. Eu pedi que sentasse no lugar indicado e que olhasse para o alto... que imaginasse inocentes sofrendo..., que... Aí ela me enleou o pescoço com os braços e disse que eu era simpático. Eu afastei seus braços e perguntei se ela tinha bebido. Ela disse que sim, que a festa estava ótima, que foi uma pena eu não ter estado lá, que ela sentiu minha falta, que gostava de mim. Quando me enlaçou de novo eu a empurrei e ela caiu no divã e gritou. Nesse instante, a faxineira entrou e saiu berrando: Assassino! Assassino!”.

A loira levantou-se e foi embora me chamando de idiota. Esta foi a minha madona...